O Mito da Escrita Profissional

Será que, para escrever bem, é necessário seguir um manual invisível, que aprisiona a criatividade e dita o ritmo da expressão? Ou será que a escrita — a verdadeira escrita — nasce justamente quando rompemos com essas regras? É aqui que começa nossa reflexão sobre o mito da escrita profissional.

Existe uma certa reverência quando falamos sobre a “escrita profissional”. Ela é frequentemente apresentada como um conjunto de normas quase sacras, em que cada palavra deve ser polida, cada frase milimetricamente medida, como se o ato de escrever fosse uma equação matemática. Mas será que isso reflete a realidade? Será que, para escrever bem, é necessário seguir um manual invisível, que aprisiona a criatividade e dita o ritmo da expressão? Ou será que a escrita — a verdadeira escrita — nasce justamente quando rompemos com essas regras?

É aqui que começa nossa reflexão sobre o mito da escrita profissional. Há uma crença difundida de que escrever bem é um privilégio reservado para aqueles que dominam a gramática com precisão cirúrgica e que obedecem rigorosamente às estruturas narrativas tradicionais. Porém, essa crença é limitada e, por vezes, sufocante. A escrita, antes de qualquer coisa, é um ato de liberdade. E essa liberdade começa com a compreensão de que, embora as regras existam, elas não são o que define o valor ou a qualidade de um texto. Elas são, no máximo, diretrizes — como o vento que guia o navio, mas não determina seu destino.

A escrita como expressão autêntica: entre o caos e a ordem

A escrita, na sua essência mais pura, é caos. Ela nasce da confusão interna, das emoções desordenadas, das ideias que se chocam umas com as outras em nossa mente. Quando colocamos essas ideias no papel, o que estamos fazendo é traduzir um fluxo desorganizado de pensamentos em algo que pode ser compreendido pelos outros. No entanto, essa tradução não precisa ser rígida, fria ou tecnicamente perfeita. O verdadeiro desafio é encontrar um ponto de equilíbrio entre a liberdade de expressão e o cuidado para que essa expressão faça sentido.

É aqui que a discussão sobre as regras se torna mais profunda. As regras da gramática, da pontuação e da estrutura narrativa são como ferramentas; elas ajudam a transformar o caos em algo inteligível. Mas quando essas ferramentas se tornam mais importantes do que a própria mensagem, elas deixam de servir ao propósito de comunicar. Se um escritor está mais preocupado em seguir cada regra gramatical à risca, ele corre o risco de sufocar sua própria voz. Afinal, de que adianta um texto tecnicamente impecável, mas vazio de alma?

A escrita deve ser autêntica. E ser autêntico é, muitas vezes, errar. Errar ao não usar uma vírgula onde se deveria, ou ao terminar uma frase com uma preposição — porque, às vezes, o fluxo do pensamento exige isso. O erro, neste sentido, não é um fracasso. Ele é uma marca de humanidade. É a brecha pela qual a vulnerabilidade e a honestidade do escritor se revelam.

A linguagem: estrutura ou experiência?

Se a escrita profissional é um mito, o que, então, é a escrita de verdade? A escrita de verdade é uma experiência. Ela é a forma como traduzimos o indizível, como organizamos o que é impossível de ser totalmente organizado. E a linguagem, por mais estruturada que seja, ainda é uma ferramenta imperfeita. É o melhor que temos para descrever o mundo, mas está longe de ser uma ciência exata.

A linguista Mikhail Bakhtin argumentava que a linguagem é um fenômeno social, um campo de batalha de significados. Cada palavra carrega em si a história de seus usos passados, assim como a possibilidade de ser transformada em algo novo. Seguindo essa linha, a escrita não é uma atividade solitária de seguir normas. Ela é um diálogo com o leitor, com a história, com o tempo. Quando você escreve, está conversando com séculos de literatura, com culturas, com pensamentos de pessoas que você nunca conhecerá. E nesse diálogo, a rigidez das regras pode ser, paradoxalmente, limitadora.

O ponto é: não escrevemos para obedecer, escrevemos para nos comunicar. E, muitas vezes, nos comunicar exige romper com as expectativas. Pense nos grandes escritores — não foram eles que quebraram paradigmas? Shakespeare, por exemplo, criou palavras, inventou expressões e desafiou estruturas tradicionais de escrita. Virginia Woolf diluiu as fronteiras entre o fluxo de pensamento e a narrativa linear. E quanto a E.E. Cummings que fez da pontuação e das letras minúsculas o seu campo de experimentação? Eles não eram escritores profissionais no sentido técnico do termo. Eram, acima de tudo, transgressores.

Liberdade não é desleixo: o cuidado na rebeldia

Agora, aqui está a chave que muitos podem perder de vista: romper com as regras não é sinônimo de escrever de qualquer jeito. Liberdade na escrita exige responsabilidade. Não estamos defendendo o desleixo, mas sim uma abordagem onde o autor tenha consciência do que está fazendo, sem se prender a normas que limitam sua expressão. O objetivo da escrita é ser compreendido. Um texto livre de regras básicas pode ser tão incompreensível quanto um código de programação para quem nunca estudou o tema.

Aqui, entra a noção de cuidado. O cuidado na escrita não é sobre seguir todas as regras à risca, mas sobre garantir que o leitor possa acompanhar seu raciocínio sem se perder. É como criar uma trilha no meio de um denso bosque. Você não precisa pavimentar o caminho, mas deve oferecer uma direção clara. Deixar o leitor perdido em meio a frases truncadas e sem sentido é, de certa forma, uma falha de comunicação. E o objetivo da escrita é, no fim das contas, comunicar algo — seja uma ideia, um sentimento ou uma história.

Quando falamos sobre o mito da escrita profissional, o que estamos combatendo é a noção de que a escrita precisa ser perfeita para ser válida. A escrita pode (e deve) ser imperfeita, porque é isso que a torna humana. No entanto, é importante manter o respeito pelo leitor. Cuidado e clareza são essenciais para que, mesmo rompendo com normas, a essência do que se quer transmitir chegue ao outro lado.

Escrever é um ato de coragem

Muitas vezes, a ideia de que precisamos escrever de forma perfeita acaba afastando as pessoas do ato de escrever. Esse é o perigo do mito da escrita profissional: ele impõe um ideal inalcançável que paralisa. Quantas ideias já foram abandonadas por medo de não estarem à altura das expectativas? Quantos textos jamais foram escritos porque alguém acreditou que nunca seria “bom o suficiente”?

Escrever é um ato de coragem, porque ao escrever, nos expomos. Mostramos nossas falhas, nossas inseguranças, nossos erros. E, no meio disso tudo, mostramos quem realmente somos. As regras, nesse sentido, são secundárias. Elas estão ali para nos guiar, mas não para nos impedir de caminhar. A escrita, no fundo, é uma extensão da fala. E quem fala pensando em todas as regras gramaticais que está quebrando? Falamos porque queremos ser ouvidos, e escrevemos pelo mesmo motivo.

Conclusão: a liberdade de escrever sem medo

Ao final, o que chamamos de escrita profissional não passa de um mito, uma construção que nos impede de ver a beleza da imperfeição. As regras existem, sim, mas não são absolutos inquestionáveis. Elas são como mapas que podem ser seguidos ou ignorados conforme a necessidade da jornada.

Escrever bem não é uma questão de seguir todas as normas gramaticais à risca. É sobre ser autêntico, sobre conseguir transmitir suas ideias de forma clara, mesmo que isso signifique quebrar algumas convenções ao longo do caminho. O verdadeiro escritor é aquele que não tem medo de errar, porque sabe que o erro é parte da jornada. Então, pegue a caneta ou o teclado, e escreva do seu jeito — mas sempre com cuidado, para que a beleza da sua mensagem não se perca no caos.

Walter Ziebarth
Walter Ziebarth

Escritor e redator publicitário, mora em Joinville, Santa Catarina, com a esposa e seus quatro filhos. Não dispensa uma boa xícara de café e histórias fantásticas.

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