Há algo profundamente humano em começar algo. Qualquer coisa. Um texto, uma história, uma ideia de livro, um projeto de vida. O início carrega em si a promessa de algo extraordinário, mas é o fim, ou melhor, a conclusão, que carrega a verdadeira sabedoria. O que muitas vezes impede esse fim, contudo, é a busca pelo que chamamos de P-E-R-F-E-I-Ç-Ã-O. Esse ideal, tão desejado e admirado, é, no fundo, uma armadilha. Ao tentar capturá-lo, nos paralisamos, e, ironicamente, nada é feito.
O que poderia ser um texto imperfeito, porém vivo, acaba se transformando num rascunho inacabado, guardado numa gaveta ou deletado sem cerimônia. Às vezes, a perfeição não apenas adia nossos sonhos — ela os destrói. O que resta é uma história não contada, uma ideia não explorada, um potencial que nunca foi ao mundo. E então, a grande pergunta surge: será que a obsessão pelo ideal nos serve ou nos prende?
O perfeccionismo como prisão
Escrever é um dos atos mais íntimos que alguém pode realizar. Quando escrevemos, expomos partes de nós que, em muitos casos, preferiríamos manter escondidas. E é aí que o medo do julgamento, a autocensura e o perfeccionismo entram em cena. Tentamos polir cada frase, eliminar cada falha, pensando que assim evitaremos a crítica ou, pior, a nossa própria insatisfação.
George R. R. Martin e Patrick Rothfuss conhecem bem esse dilema. Ambos estão em uma espécie de limbo criativo, presos pela expectativa de criar algo perfeito. Os Ventos do Inverno de Martin, aguardado ansiosamente há anos, parece estar constantemente à beira de ser lançado, mas nunca chega. O mesmo ocorre com As Portas de Pedra, o tão esperado desfecho da série de Rothfuss. Esses autores, por mais brilhantes que sejam, estão reféns de algo que eles próprios ajudaram a criar: a expectativa de que sua próxima obra seja impecável.
No entanto, o que seus leitores realmente querem é uma história — mesmo que imperfeita. Querem algo que os faça sentir, refletir, se conectar. O desejo pela perfeição absoluta não apenas atrasa a criação, ele nos aliena do verdadeiro propósito de criar: comunicar, tocar o outro.
O resgate de Carrie
Stephen King, um dos autores mais prolíficos e populares de todos os tempos, também sentiu esse peso. Antes de se tornar um gigante da literatura, King estava à beira de desistir. Ele escreveu o manuscrito de Carrie, a Estranha, mas não acreditava que a história tinha valor. Em um momento de frustração, jogou o rascunho no lixo. Sua esposa, Tabby King, viu o potencial onde ele só via falhas. Ela resgatou o manuscrito e insistiu para que ele continuasse. Contra todas as probabilidades e depois de inúmeras rejeições, o livro foi publicado — e o resto é história.
O que podemos aprender com isso? Talvez a lição mais profunda de todas: às vezes, nós mesmos somos os piores juízes de nossas próprias criações. King, que via defeitos em Carrie, estava tão focado no que a história poderia ter sido que não conseguia ver o valor do que ela já era. Se ele tivesse permanecido na busca pelo “perfeito”, jamais teria se tornado o autor que conhecemos hoje. Terminar — mesmo que imperfeito — foi o que o impulsionou para o sucesso.
Tabby King desempenhou um papel crucial, lembrando-nos de algo fundamental: a visão de outra pessoa, que enxerga além de nossas inseguranças, pode ser a chave para desbloquear nosso potencial. Às vezes, o simples ato de terminar é mais importante do que tentar alcançar um ideal inatingível. E ao deixar que outros vejam o que criamos, permitimos que a nossa obra viva — mesmo que não seja “perfeita”.
Tolkien e a imperfeição perfeita de suas descrições
Nenhum autor exemplifica melhor a ideia de que feito é melhor do que perfeito do que J.R.R. Tolkien, especialmente quando olhamos para suas famosas — ou, para alguns, infames — descrições de paisagens. Tolkien nunca se preocupou em se ajustar às expectativas dos críticos ou em cortar suas páginas de descrições detalhadas para se adequar aos moldes de narrativas mais concisas e dinâmicas. Ele escrevia como gostava, com paixão e entrega, dedicando-se ao que considerava essencial: fazer seus leitores sentirem o mundo que ele criou, em toda sua profundidade.
Tolkien sabia que não agradaria a todos, mas isso nunca o impediu de escrever da maneira que lhe era mais autêntica. Ele não editava suas páginas para torná-las mais “palatáveis” ou para acelerar o ritmo da trama. Para ele, o ritmo lento era uma característica deliberada, uma marca registrada de seu estilo, que nos convidava a desacelerar e mergulhar no universo que ele criara com tanto cuidado. As piadas que circulam até hoje sobre o tempo que ele dedicava às paisagens mostram, curiosamente, que essa “imperfeição” não só foi notada, mas também se tornou parte da mística de seus livros.
O caminho natural das coisas
Há uma estética japonesa chamada Wabi-Sabi que celebra o imperfeito, o incompleto, o temporário. Ela nos ensina a encontrar beleza nas coisas que não são exatamente simétricas, polidas ou eternas. Um vaso com rachaduras, uma parede desgastada pelo tempo, a escrita que carrega marcas de falhas, tudo isso tem valor. O conceito de Wabi-Sabi é um antídoto para a obsessão moderna com a perfeição.
Aplicar Wabi-Sabi à escrita ou a qualquer outro projeto criativo é uma libertação. Não estamos buscando criar algo intocável e eterno; estamos criando algo que reflete a nossa humanidade — e a humanidade é, por natureza, imperfeita. As falhas que colocamos em nossos textos, por mais que tentemos escondê-las, são parte do que nos torna únicos.
Isso nos traz de volta à questão central: por que buscamos tanto a perfeição, se ela nunca será atingida? Talvez a resposta esteja em nosso desejo de controle. Acreditamos que, ao polir cada detalhe, podemos controlar como os outros nos veem, como nossas obras serão lembradas. Mas a verdade é que esse controle é ilusório. O que torna uma obra inesquecível não é sua perfeição técnica, mas o impacto emocional que ela provoca.Quantas obras, na literatura e em outras formas de arte, não são justamente aplaudidas por sua humanidade, por seus “defeitos” que, na verdade, as tornam únicas? Pense em obras como Moby Dick, de Herman Melville, ou até mesmo em O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger. Muitos críticos apontaram falhas nessas narrativas, mas isso não impediu que se tornassem verdadeiros clássicos, amados por gerações de leitores.
Nietzsche e a beleza do caos
Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, disse certa vez: “Você deve ter o caos dentro de si para dar à luz uma estrela dançante.” Essa frase, por si só, resume a tensão entre a ordem da perfeição e a criatividade imperfeita. O caos que Nietzsche menciona é o estado natural da criação — um processo desordenado, cheio de incertezas e contradições. É no meio desse caos que a verdadeira arte surge. A tentativa de organizar esse caos de forma meticulosa, eliminando suas imperfeições, é, na verdade, uma forma de sufocar a vida que há nele.
Na escrita, esse caos se manifesta de várias formas: nas ideias que não seguem uma linha lógica, nas frases que parecem estranhas ao primeiro olhar, nas revisões que nunca terminam. Mas, ao contrário do que muitos acreditam, é exatamente esse caos que dá vida às palavras. Um texto perfeitamente polido pode até ser tecnicamente correto, mas pode acabar sem alma, sem a energia que o caos criativo oferece.
Aceitar o caos e as imperfeições é aceitar a vida como ela é. A perfeição é uma prisão que construímos para nós mesmos, enquanto a imperfeição é uma libertação. Em vez de buscar eliminar as falhas, devemos aprender a viver com elas — e, mais ainda, a celebrá-las.
O mito da escrita profissional
Essa discussão lembra um outro mito bastante comum, abordado no nosso outro artigo O Mito da Escrita Profissional que explora a ideia de que não existe uma “escrita profissional” no sentido puro do termo. Todos os escritores, até mesmo os mais experientes, enfrentam a insegurança e o bloqueio criativo. Ninguém acorda um dia e simplesmente escreve uma obra-prima. Pelo contrário, a escrita é um processo constante de tentativas, erros, e, eventualmente, acertos.
Escrever bem não é sobre alcançar a perfeição, mas sobre comunicar. Às vezes, o ato de concluir algo, mesmo que não seja o ideal em sua mente, é muito mais valioso do que o esforço exaustivo de polir cada palavra. Afinal, uma ideia imperfeita concretizada é infinitamente melhor do que uma ideia “perfeita” que jamais verá a luz do dia.
Superando a paralisia do ideal e a coragem de dizer Fim.
Um dos maiores perigos do perfeccionismo é a paralisia criativa. Quantas ideias brilhantes foram perdidas porque os criadores temiam que não seriam “boas o suficiente”? Quantos projetos ficaram pelo caminho porque o ideal inalcançável se transformou em uma barreira? A escritora Anne Lamott, em seu livro Bird by Bird, diz que o primeiro rascunho deve ser necessariamente ruim. É um ato de libertação que nos permite deixar de lado o medo de errar e simplesmente criar.
Lamott entende que a chave para superar o bloqueio criativo está em aceitar o processo de imperfeição. Escrever mal é parte do processo de escrever bem. Essa aceitação da falha inicial permite que a criatividade flua sem as amarras do perfeccionismo. O verdadeiro erro, segundo Lamott, é não escrever nada, não criar nada, porque o medo de falhar se tornou um obstáculo maior do que o desejo de finalizar.
Quando olhamos para as histórias inacabadas de Martin, Rothfuss e tantos outros, vemos não apenas o peso da expectativa, mas também o medo de que o final nunca seja “bom o suficiente”. O que esses escritores ainda não perceberam, talvez, é que o ato de concluir, em si, é um gesto de coragem, não de fraqueza. É preciso uma imensa força para aceitar que algo nunca será perfeito, mas ainda assim merece existir.
No fim das contas, o ato de terminar algo — um livro, uma ideia, uma vida — é um ato de vulnerabilidade. Estamos nos expondo ao mundo, dizendo: “Este sou eu, esta é a minha visão de mundo, com todas as minhas falhas, com todos os meus defeitos.” E essa é uma das coisas mais poderosas que podemos fazer como criadores, como seres humanos.
A perfeição do eterno inacabado
A lição final que tiramos dessas histórias — de George R. R. Martin, Patrick Rothfuss, Stephen King e tantos outros — é que feito é melhor do que perfeito. A perfeição é uma ilusão, um horizonte que nunca alcançamos. Quanto mais nos aproximamos, mais ele se afasta, sempre prometendo algo melhor, mas nunca nos permitindo chegar ao destino.
No entanto, a beleza da criação está exatamente no fato de que nunca será perfeita. As obras que realmente nos tocam são aquelas que, de uma forma ou de outra, refletem a humanidade do autor — suas falhas, suas inseguranças, suas verdades. É no caos que encontramos a força criativa, e é na aceitação da imperfeição que encontramos a verdadeira beleza.
Concluir, então, é um ato de coragem e sabedoria. Ao terminar aquilo que começamos, mesmo que não seja perfeito, estamos nos libertando das amarras do ideal inalcançável. Estamos dizendo ao mundo que estamos dispostos a aceitar nossas falhas, a compartilhar nossa visão, e a continuar criando, mesmo em face da imperfeição.
Que sejamos mais como Marcelo D2, que mesmo ele estando em busca da batida perfeita, nunca deixou de nos presentar com suas músicas horrorosas.
No fim das contas, é melhor um livro imperfeito nas mãos de leitores do que uma obra-prima inexistente. Afinal, como diria o grande filósofo moderno, Nike: “Just do it” — simplesmente faça.